Que não venham de camisas....
quinta-feira, 1 de maio de 2014
De um corpo inquieto
Conheci Miro sentado, meio corcunda com as mãos espremidas entre as coxas.
Pouco depois se espremeram entre as axilas, só com os polegares de fora.
Olhava para o chão.
Parecia tão pequeno em torno de si mesmo.
Até que a roda silenciou e ele falou, falou, falou.
Não lembro o quê. Só escutei um corpo espremido.
Descobri que tinha mãos desobedientes, pernas fracas e a cabeça contida.
Tremia muito.
Olhar pra cima, nem pensar!
***
Acompanhei Miro por alguns meses.
Saíamos a caminhar pelas ruas de Novo Hamburgo e conversávamos em bancos
de praça ou muretas de terrenos baldios. Também com alongamentos e bergamotas.
Miro foi viajante, andou sozinho por muitos lugares e agora me fala sobre a
prisão que sente em seu corpo. Da fraqueza, dos desmaios súbitos e da perda de
memória. Do perigo em andar só.
- Como posso viajar assim? Ele pergunta.
- Não sei, mas podemos tentar descobrir. Podemos começar ensaiando viagens com o
pensamento. Podes me contar mais sobre a Argentina? – Respondo.
Nas nossas pequenas viagens Miro nunca teve crises.
E ele me ensinou sobre pássaros.
***
Muitos são os corpos inquietos.
Agoniados, transbordantes.
Com ou sem palavras.
Expressivos, com força.
Contidos, babantes.
Vivendo?!
Vontade de goiaba
Vontade de goiaba
Como apreciar?
Tenho uma boa relação com os alimentos. De garfo e faca.
Mãos lambuzadas me afligem.
Faz tempo que não vejo uma goiaba, mas lembro bem do cheiro.
Daqui recordo uma cena marcante de uma oficina de futebol.
Acho que não durou um minuto.
Em direção ao ginásio, pela calçada, alguns andavam mais rápido e outros devagar.
Num ritmo de todos: de respeitar, esperar e também fazer andar.
Até que Leo avistou uma goiabeira pelo caminho e, dela, todos se serviram das frutas
bem maduras.
E eu andava um pouco à frente quando percebi o som da pausa. Olhei para trás.
Por alguns instantes só enxerguei Cláudio, entre todos, apreciando uma pequena goiaba.
Ele tinha fome de sabor, vontade de goiaba e destreza de menino.
Simples, singular.
Bonito de ver.
Acho que era a melhor goiaba do mundo.
Como apreciar?
Tenho uma boa relação com os alimentos. De garfo e faca.
Mãos lambuzadas me afligem.
Faz tempo que não vejo uma goiaba, mas lembro bem do cheiro.
Daqui recordo uma cena marcante de uma oficina de futebol.
Acho que não durou um minuto.
Em direção ao ginásio, pela calçada, alguns andavam mais rápido e outros devagar.
Num ritmo de todos: de respeitar, esperar e também fazer andar.
Até que Leo avistou uma goiabeira pelo caminho e, dela, todos se serviram das frutas
bem maduras.
E eu andava um pouco à frente quando percebi o som da pausa. Olhei para trás.
Por alguns instantes só enxerguei Cláudio, entre todos, apreciando uma pequena goiaba.
Ele tinha fome de sabor, vontade de goiaba e destreza de menino.
Simples, singular.
Bonito de ver.
Acho que era a melhor goiaba do mundo.
O desenho dos rostos
Aqui são apenas traçados de rostos.
Linhas líquidas, inventadas pelo gesto.
Retratos?
eu não diria.
Copiar rosto já não faz mais sentido.
Prefiro tentar descobrir o som deles.
Descubro gargalhadas em linhas e sensações.
Em dentes ou covinhas.
Ouço também pupilas dilatadas.
E lágrimas percorrendo os sulcos da face.
Vejo gargantas urrando em sufoco.
Observo suspiros de fúrcula.
Vejo a carne em expressão.
Em preto e branco, não mais ou menos.
Na contradição.
Em altos e baixos ou degradês necessários.
Sem pose, com colarinhos engomados ou sorrisos embaraçados.
Não importa.
Não são retratos.
Walter Pater em História da Beleza
A cada momento uma perfeição de forma surge numa mão
ou rosto; alguma tonalidade nas colinas ou no mar é mais
preciosa que as demais; algum estado de paixão ou de
visão ou de excitação intelectual é irresistivelmente real e
atraente para nós – por aquele momento apenas. Não o
fruto da experiência, mas a própria experiência, é o fim.
(...) Arder sempre nessa sólida chama pétrea, manter o
êxtase, é o sucesso da vida.(...) Enquanto tudo se
desmancha sob nossos pés, bem podemos tentar aferrar
alguma paixão rara, alguma contribuição ao
conhecimento que com o clarear de um horizonte pareça
deixar o espírito em liberdade por um momento, ou
alguma excitação dos sentidos, estranhas tintas, estranhas
cores e cheiros curiosos, ou obra de mão de artista ou o
rosto de pessoa amiga.
(Walter Pater, História da beleza)
ou rosto; alguma tonalidade nas colinas ou no mar é mais
preciosa que as demais; algum estado de paixão ou de
visão ou de excitação intelectual é irresistivelmente real e
atraente para nós – por aquele momento apenas. Não o
fruto da experiência, mas a própria experiência, é o fim.
(...) Arder sempre nessa sólida chama pétrea, manter o
êxtase, é o sucesso da vida.(...) Enquanto tudo se
desmancha sob nossos pés, bem podemos tentar aferrar
alguma paixão rara, alguma contribuição ao
conhecimento que com o clarear de um horizonte pareça
deixar o espírito em liberdade por um momento, ou
alguma excitação dos sentidos, estranhas tintas, estranhas
cores e cheiros curiosos, ou obra de mão de artista ou o
rosto de pessoa amiga.
(Walter Pater, História da beleza)
TÁ TUDO CERTO
O colonialismo visível te mutila sem disfarce: te proíbe de dizer, te proíbe de
fazer, te proíbe de ser. O colonialismo invisível, por sua vez, te convence de
que a servidão é um destino, e a impotência, a tua natureza: te convence de
que não se pode dizer, não se pode fazer, não se pode ser.”
(Galeano, 2005, p.157)
Das cólicas
Espaço aberto
Cortado, trançado, pintado ,enrolado, manchado, colado.
Exposto.
É tudo de mentira, só ilusão de uma dor visível...
Porque se não sangra, não dói.
E se a loucura grita, é pití.
Dor deve ter cor, cheiro e textura de sangue.
Essa minha dor-arte é forjada, de cinema de horror.
Dor não é o nó das tripas dos emotivo-enjoados, dor é de quem expurga comida estragada e não de quem vomita sofrimento.
A dor vem do alimento mal lavado e não da palavra oprimida.
Repito, é tudo mentira.
Acho que dor pode ter cor de gris, cheiro de falta de ar e textura de quem sente.
Acho que a dor invisível grita por espaço.
Loucura seria não gritar no ouvido de quem só percebe o sofrimento do corpo visível.
E a velha dor da guilhotina persiste, cabeças rolam em direção aos especialistas, enquanto tripas são tratadas com buscopan.
Cortado, trançado, pintado ,enrolado, manchado, colado.
Exposto.
É tudo de mentira, só ilusão de uma dor visível...
Porque se não sangra, não dói.
E se a loucura grita, é pití.
Dor deve ter cor, cheiro e textura de sangue.
Essa minha dor-arte é forjada, de cinema de horror.
Dor não é o nó das tripas dos emotivo-enjoados, dor é de quem expurga comida estragada e não de quem vomita sofrimento.
A dor vem do alimento mal lavado e não da palavra oprimida.
Repito, é tudo mentira.
Acho que dor pode ter cor de gris, cheiro de falta de ar e textura de quem sente.
Acho que a dor invisível grita por espaço.
Loucura seria não gritar no ouvido de quem só percebe o sofrimento do corpo visível.
E a velha dor da guilhotina persiste, cabeças rolam em direção aos especialistas, enquanto tripas são tratadas com buscopan.
Sou a favor de uma arte - Claes Oldenburg
"Sou a favor de uma arte que seja mítico-erótico-política, que vá além de sentar o seu traseiro num museu. Sou a favor de uma arte que evolua sem saber que é arte, uma arte que tenha a chance de começar do zero. Sou a favor de uma arte que se misture com a sujeira cotidiana e ainda saia por cima.
Sou a favor de uma arte que imite o humano, que seja cômica, se for necessário, ou violenta, ou o que for necessário. Sou a favor de uma arte que tome suas formas das linhas da própria vida, que gire e se estenda e acumule e cuspa e goteje, e seja densa e tosca e franca e doce e estúpida como a própria vida.
Sou a favor de um artista que desapareça e ressurja de boné branco pintando anúncios ou corredores.
Sou a favor da arte que sai da chaminé como pêlos negros e esvoaça ao vento.
Sou a favor da arte que cai da carteira do velho quando ele é atingido por um pára-lama.
Sou a favor da arte que cai da boca do cãozinho, despencando cinco andares do telhado.
Sou a favor da arte que o garoto lambe, depois de rasgar a embalagem.
Sou a favor de uma arte que sacuda como o joelho de todo mundo quando o ônibus cai num buraco.
Sou a favor da arte tragável como os cigarros e fedorenta como sapatos.
Sou a favor da arte que drapeja, como as bandeiras, ou assoa narizes, como os lenços.
Sou a favor da arte que se veste e tira, como as calças, que se enche de furos, como as meias, que é comida, como um pedaço de torta, ou descartada, com total desdém, como merda.
Sou a favor da arte coberta de ataduras, sou a favor da arte que manca e rola e corre e pula.
Sou a favor da arte enlatada ou trazida pela maré.
Sou a favor da arte que se enrosca e grunhe como os lutadores.
Sou a favor da arte que solta pêlo.
Sou a favor da arte que você senta em cima.
Sou a favor da arte que você usa para cutucar o nariz, da arte em que você tropeça.
Sou a favor da arte vinda de um bolso, dos profundos canais do ouvido, do fio da navalha, dos cantos da boca, da arte enfiada nos olhos ou usada nos pulsos.
Sou a favor da arte sob as saias, e a arte de esmagar baratas.
Sou a favor da arte da conversa entre a calçada e a bengala de metal do cego.
Sou a favor da arte que cresce num vaso, que desce do céu à noite, como um raio, e se esconde nas nuvens e retumba. Sou a favor da arte que se liga e desliga com um botão.
Sou a favor da arte que se desdobra como um mapa; que se pode abraçar como um namorado ou beijar como um cachorrinho. Que expande e estridula, como um acordeão, que você pode sujar de comida, como uma toalha de mesa velha.
Sou a favor da arte que se usa para martelar, alinhavar, costurar, colar, arquivar.
Sou a favor da arte que diz as horas, ou onde fica essa ou aquela rua.
Sou a favor da arte que ajuda velhinhas a atravessar a rua.
Sou a favor da arte da máquina de lavar.
Sou a favor da arte de um cheque do overno.
Sou a favor da arte das capas de chuva de guerras passadas.
Sou a favor da arte que sai como vapor dos bueiros no inverno.
Sou a favor da arte que estilhaça quando se pisa numa poça congelada.
Sou a favor da arte dos vermes dentro da maça.
Sou a favor da arte do suor que surge entre pernas cruzadas.
Sou a favor da arte dos cabelinhos da nuca e dos chás tradicionais, da arte entre os dentes de garfos dos bares, da arte do cheiro de água fervendo.
Sou a favor da arte de velejar aos domingos e da arte das bombas de gasolina vermelhas e brancas.
Sou a favor da arte de colunas azuis brilhantes e anúncios luminosos de biscoito.
Sou a favor da arte de rebocos e esmaltes baratos.
Sou a favor da arte do mármore gasto e da ardósia britada.
Sou a favor da arte das pedrinhas espalhadas e da areia deslizante.
Sou a favor da arte dos resíduos de hulha e do carvão negro.
Sou a favor da arte das aves mortas.
Sou a favor da arte das marcas no asfalto e das manchas na parede.
Sou a favor da arte dos vidros quebrados e dos metais batidos e curvados, da arte dos objetos derrubados propositalmente.
Sou a favor da arte de pancadas e joelhos arranhados e traquinagens.
Sou a favor da arte dos cheiros das crianças.
Sou a favor da arte dos murmúrios das mães.
Sou a favor da arte do burburinho de bares, de palitar os dentes, tomar cerveja, salpicar ovos, de insultar. Sou a favor da arte de cair dos bancos de botecos.
Sou a favor da arte de roupas íntimas e táxis.
Sou a favor da arte das casquinhas de sorvete derrubadas no asfalto.
Sou a favor da arte majestosa dos dejetos caninos, elevando-se como catedrais.
Sou a favor da arte que pisca, iluminando a noite.
Sou a favor da arte caindo, borrifando, pulando, sacudindo, acendendo e apagando.
Sou a favor da arte de pneus de caminhão imensos e olhos roxos.
Sou a favor da arte Kool, arte 7-Up, arte Pepsi, arte Sunshine, Arte 39 centavos, arte 15 centavos, arte Vatronol, arte descongestionante, Arte Plástico, Arte Mentol, Arte L&M, Arte Laxante, Arte Grampo, Arte Heaven Hill, Arte Farmácia, , Arte Sana-Med, Arte Rx, Arte 9,99, Arte Agora, Arte Nova, Arte Como, Arte Queima de estoque, Arte Última Chance, apenas arte, arte diamante, arte do amanhã, arte Franks, arte Ducks, arte hamburgão.
Sou a favor da arte do pão molhado de chuva.
Sou a favor da arte da dança dos ratos nos forros.
Sou a favor da arte de moscas andando em peras brilhantes sob a luz elétrica.
Sou a favor da arte de cebolas tenras e talos verdes firmes.
Sou a favor da arte do estalido das nozes com o vai-e-vem das baratas.
Sou a favor da arte triste e marrom das maçãs apodrecendo.
Sou a favor da arte dos miados e alaridos dos gatos e da arte de seus olhos luzentes e melancólicos.
Sou a favor da arte branca das geladeiras e do abrir e fechar vigoroso de suas portas.
Sou a favor da arte do mofo e da ferrugem.
Sou a favor da arte dos corações, lúgubres ou apaixonados, cheios de nougat.
Sou a favor da arte de ganchos para carne usados e barris rangentes de carne vermelha, branca, azul e amarela.
Sou a favor da arte de objetos perdidos ou jogados fora na volta da escola.
Sou a favor da arte de árvores lendárias e vacas voadoras e sons de retângulos e quadrados.
Sou a favor da arte de lápis e grafites de ponta macia de aquarelas e bastões de tinta a óleo, da arte dos limpadores de pára-brisas, da arte de um dedo na janela fria, no pó de aço ou nas bolhas das laterais da banheira.
Sou a favor da arte dos ursinhos de pelúcia e pistolas e coelhos decapitados, guarda-chuvas explodidos, camas violadas, cadeiras com as pernas quebradas, árvores em chamas, tocos de bombinhas, ossos de galinha, ossos de pombo e caixas com gente dormindo dentro.
Sou a favor da arte de flores fúnebres levemente murchas, coelhos ensangüentados pendurados e galinhas amarelas enrugadas, baixos e pandeiros, e vitrolas de vinil. Sou a favor da arte das caixas abandonadas, enfaixadas como faraós.
Sou a favor da arte de caixas-d'água e nuvens velozes e sombras tremulantes.
Sou a favor da arte inspecionada pelo Governo dos Estados Unidos, arte tipo A, arte preço regular, arte ponto de colheita, arte extra luxo, arte pronta para consumir, arte o melhor por menos, arte pronta para cozinhar, arte higienizada, arte gaste menos, arte coma melhor, arte presunto, arte porco, arte frango, arte tomate, arte banana, arte maçã, arte peru, arte bolo, arte biscoito.
acrescente:
Sou a favor da arte que seja penteada, que pensa de cada orelha, seja posta nos lábios e sob os olhos, depilada das pernas, escovada dos dentes, que seja presa nas coxas, enfiada nos pés. quadrado que se torna amorfo."
Referência:
Ferreira, Glória, and Cecília Cotrim. Escritos de artistas: anos 60/70. Jorge Zahar Editor Ltda, 2006.
Assinar:
Postagens (Atom)